HERANÇA DE PAPEL

Herança de papel



Existe alguma herança a sua espera? Os mais afortunados responderão:evidente! Apartamentos, terrenos, dólares, jóias. Louvados sejam. Mas se você não faz parte dessa turma, saiba que existe um tipo de herança que fatalmente cairá em suas mãos: papéis. Infelizmente, nada de ações ou escrituras. Papelada comum: bilhetes, versos em guardanapos, desenhosinfantis, fotos antigas. Tudo o que foi guardado pela geração que lhe precedeu.Todos nós acumulamos papéis, e alguns de nós, mais do que isso. Há quem guarde a primeira rolha de vinho tomado a dois. Frascos de perfume vazios. Medalhas de honra ao mérito conquistadas no colégio. Boletins escolares, santinhos de primeira comunhão, fios de cabelo, embalagens de bombons, folhas de árvores, autógrafos. Objetos que, para terceiros,nada representam, mas que contam histórias de vida e trazem à tona lembranças que, se dependessem única e exclusivamente da memória, cairiam no esquecimento.Até aí, ninguém precisa de camisa-de-força. Mas têm aqueles colecionadores preciosistas, que não se inibem diante do estado deteriorado de suas recordações. São os que guardam unhas de antigos namorados, chicletes usados, baganas de cigarro e até mesmo o umbiguinho do nenê. Romanticos? Acho meio nojento.Há os vidrados em objetos históricos. Um pedaço do muro de Berlim. Água benta trazida do Vaticano. Uma corda da guitarra usada no primeiro show do Barão Vermelho. A lente de contato de um primo em terceiro grau da princesa Diana. Areia usada para construir o Palace 2. Um dia, acreditam,irá tudo a leilão.O que dizem os especialistas da alma humana sobre esse culto ao passado? Não faço idéia, mas arrisco uma psicologia de almanaque: a dificuldade em se desfazer de coisas antigas talvez seja proporcional à dificuldade em olhar para frente, descobrir novos interesses, evitar se repetir.Existem pessoas que não conseguem sequer doar roupas que não servem mais, achando que vão usá-las um dia, nem que seja num baile à fantasia.Conservam o passado com amor e naftalina.Depois que morrermos, tudo o que tiver valor afetivo para nós se transformará em bisbilhotice para quem limpar nossos baús. Tudo o que nos fez chorar irá para o lixo seco. Lembranças não se herdam, vão para o túmulo com a gente. Mas poucos têm coragem de fazer a faxina antes de ir embora, até porque ninguém sai da vida com hora marcada. Sendo assim,impossível não deixar um legado de emoções materializadas. De minha parte, mesmo ciente de que o que interessa é o aqui e agora, não consigo rasgar cartas nem fotos. Guardo para minhas filhas saberem mais sobre mim, porque nem sempre nossas palavras contam tudo. Guardo também três diários, certidões e algumas notas fiscais. E só. Não tenho tantahistória assim, nem
nostalgia de nada, e muito menos espaço nos armários.

Martha Medeiros

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